Sunday 1 December 2013

Conto - Roniwalter Jatobá

Elizabeth Magill ~ Lodge (2), oil on canvas

Alojamento
"A cidade está só. Fria e deserta.
O silêncio povoa a mocidade.
O frio que sai das fábricas
dói no peito
como facada."

Aristides Klafke
Pois digo: aqui dá saudade. Tudo no vigiar deste alojamento medonho de grande que parece um hospital vazio. Nessas horas da manhã todo mundo já descambou no rumo do Paraíso, Ipiranga, Mooca, Praça da Sé, aí por São Paulo afora, num serviço, lembro do trabalho de antes, que já me levou, me cansou metade das forças. E dá saudade, quando vejo os quartos de seis, doze homens, camas de cada lado ou mais vejo esse casarão de madeira, camas pra tudo que é canto, vazias. E olho a porta, alguém que limpa a sujeira da noite anterior, um ente perdido empurrando com a vassoura o sujo do tablado. Tudo lá fora: montes de terra, areia, depósitos de tábuas, tijolos que ficam muito tempo parados esperando a vez de irem para as construções, ferramentas, de lado no terreno baldio.

Vigio tudo. Trabalho de noite. Num sendo de chuva, noite de aguaceiro, não é ruim. A gente acostuma. Só é danado quando uma gripe pega e se tosse a noite inteira. Aí, a tosse vai varando o escuro do alojamento e a rua brilhando de luzes vazia cá fora. Quebrando o silêncio, ali, na madrugada algum carro de polícia passa devagar quase parando na frente do cemitério da Vila Mariana, bem na frente, perto, tem noites que me animam as vistas já dobradas de sono: carros parados, gente entrando no velório ao lado do cemitério, entrando saindo com os olhos chorosos.

Vigio essas ruas, essas casas em frente de gente de posse, que até frentes ajardinadas têm, pois estes olhos que tomam conta deste alojamento no virar da noite pro dia, ganham pra isso, só não dá pra vigiar a vida que passa correndo dia após dia.

O caminhão, todo dia, leva e traz. De manhã, no despontar dela, escuro ainda, os homens vão levantando de um a um, rostos sonados, nessas horas eles não fazem a zoada que na tarde, volta deles, eles procuram como se espantasse o medo daqui, como se afugentasse as histórias que cada um trouxe de Minas, Bahia, Pernambuco, Ceará, Paraíba, de Minas mais, como Silvestre que em tudo trabalha, já matou três na terra dele, isso da boca dele sai, mas a gente vê que é muita lambança, assim, acredita descrendo.

E de manhãzinha o frege é pouco, se mal comparando com a tarde, na base de umas quatro horas. Nas quatro da tarde em ponto, algum caminhão desponta na rua, os homens calados em cima, chega aqui, abro o portão, o caminhão entra macio, os homens vão descendo, guardando as ferramentas, outros pulando correndo na direção dos seus quartos, isso aqui vira feira, ali se escuta conversa de um, radiola ligada de outro, música de rádio pra tudo que é canto, aí, alegra mais. Negreja de gente. Assim, gosto.

No outro dia, no cair das horas vai ficando o silêncio de novo. Quando dá assim pelas oito da manhã neste alojamento nem mosca zune nas paredes dos quartos. E lá longe nos bairros, sei, os homens cavando buracos, vazando água de bueiros, cortando travessias. Homens trabalhando de perderem o chocalho, modo de dizer, homens lavando a camisa de suor, o suor descendo pelas costas chegando nas calças, molhando a roupa no calor das ruas de carros apressados e de buzinas reclamando das ruas apertadas e poeirentas.

No último caminhão que sai, já dia tamanho, o alojamento desaquece do calor dos homens, cem se for contar, então procuro meu canto e tiro o sono do corpo com o sol alumiando lá fora na rua. Nessas horas nem a zoada de alguma escavadeira me regra o sono, o sono pesado suado do calor das tardes, sono parecendo tresvario, parecendo coisa de morto. Época de frio, julho de inverno desregrado, é bom. Sono caipora de tardes frias, o vento entrando nas frestas do barracão, pois a divisão, aqui, é feita de madeira fina que separa os quartos, e já vi homem se encostar em corpo de outro, em meados de junho, unir as camas, sem mau sentido, querendo pegar a quentura da gente, no frio muito.

De noite, eu vigiando, o frio entrando no corpo, doendo por dentro da farda e no alojamento o roncar de cem bocas só esperando o chamado das quatro horas. Os caminhões encostados roncando, se aquecendo, o motorista lá dentro, de vidros fechados só esperando os homens subirem na carroceria pra começar a viagem, uns pra mais perto, outros pra mais longe, pra todos o mesmo serviço. A cidade se despertando e já encontrando os homens seguros em cavadores, enxadas, pás, quebrando o asfalto, arrancando a terra das ruas, limpando bueiros.

No começo do alojamento, dois anos se foram, quando se podia ainda contar os homens que viviam aqui, quando não havia esse barulho que espanta a tristeza de agora, de manhã, toda manhã, tinha Doralina. Nem ela passa, agora, em frente ao alojamento. Dá voltas em outras ruas como fugindo daqui. Aqui era bom no começo, pois Doralina empregada num prédio da rua passava safada carregando pão e leite em frente me tentando, eu engomado vestido de farda de brim azul da firma, nem ligo, mas ligando naquela precisão de mulher.

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