Sunday 1 December 2013

Editorial

Business Man, by Sebastian Govino

“É preciso encontrar a palavra mágica
para se elevar o canto do mundo”

~ Joseph Freiherr von Eichenddorf (1778-1857).

“habent sua fata verba”
~ in Pequeno Livro dos Rancores

TUDA Dezembro ~ Dezembro TUDA! Gostaria que fosse de luto este natal, esta TUDA:

Luto pela morte da miséria,
     Luto pela morte da maldade,
          Luto pela morte da ganância,
               Luto pela morte da ignorância.

Se mortos estivessem estes quatro cavaleiros do apocalypse humano, teríamos mais motivos para comemorar; fosse os presentes de Papai Noel, debaixo da árvore ou sobre a lareira, fosse o nascimento de Jesus, fosse o fim da opressão religiosa, ou outro motivo qualquer, nem importaria tanto, que com corpo e mente na calma e na tranquilidade iríamos longe, ah iríamos, e teríamos um natal de justa medida, e assim o novo-ano nos seria mais leve...

Mas se os quatro do apocalypse ainda vagam pela Terra, certamente buscam algo... talvez estejam à caça dos Grandes Tesouros da humanidade, na esperança de eliminá-los. Tempo, Bom-Senso, Sabedoria, Compaixão e, talvez o mais valioso de todos, e consequentemente o mais difícil de se obter, Humildade.

Incrível o poder inverso que a humildade exerce nas pessoas: quanto mais humilde alguém se mostra, se apresenta, mais falta humildade no outro, próximo ou distante. É como se a humildade, não humilde ela mesma, não suportasse a convivência com outra de sua própria espécie, e travasse então uma batalha de nervos, onde apenas uma vence, botando a outra pra correr!

E se você for o azarado da humildade derrotada, só lhe resta rezar, camaradinha, rezar para que um resquício qualquer de bom-senso o desperte da arrogância alucinada na qual você provavelmente estará atolado, a discursar absurdos cheios de propriedades... e com um pouco de sorte, você se retrairá a tempo de salvar um pouco de dignidade.

E se de algo me falto, nesta minha busca da humildade, também disso me alimento, já que a pele é a melhor escola - tudo que se sente na pele sente-se mais; tudo o que se aprende pela pele nos marca mais.

Sem saber se direito se é humilde ou a própria encarnação da humildade, vem esta TUDA, com ou sem LUTO, cheia de sí mesma, que só ela se bastava: claro, graças aos leitores e aos colaboradores, dentre eles os já conhecidos pyndahýbicos, uns já partidos, outros ainda não (toc, toc, toc), destemundo & d'outraléns, mais os colaboradores usuais e os esporádicos também. TUDA entudece-se, e agradece a todos!

É isso aí companheiros, na velha e suja LabUTA do dia a dia, que não bastasse ser suja, por vezes é podre, e mesmo onde se espera compaixão encontra-se a oportunidade; onde se espera a solidariedade se encontra o egoísmo; onde se espera a generosidade se encontra a avareza; mostrar-se bom não nos faz bons, é preciso mais... muito mais, e os donos do mundo não vão colocar a mão em seus bolsos empachado de dinheiros, isso não, pois assim como a Língua e a Consciência, ambas todo o bem e todo o mal do homem, o Capital é todo o bem e todo o mal da humanidade, e exige muito bom-senso, sabedoria, e compaixão!

TUDA Dezembro no prelo
"Há 10 tipos de pessoas no mundo:
as que entendem binário e as que não entendem."
(Frank McCown)

Asyno Eduardo Miranda

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o (auto-proclamado) editor
deste porto semisseguro da jlha do Eire
oje, vigzº terº dia do dezº segº mez
d este Anno Domini de MMXIII

Dívida Interna

Editor
Eduardo Miranda

Capa
José Geraldo de Barros Martins

Blogagem
Eduardo Miranda

Revisão
dos autores

Participam desta edição:
Aristides Klafke, Arnaldo Xavier, Cândido Portinari, Carlos Drummond de Andrade, Cesar Cruz, Dorival Fontana, Ed Ruscha, Eduardo Miranda, Elizabeth Magill, Gerard Boersma, Hamilton Faria, Henry Vaughan, John Leech, José Carlos de Souza, José Geraldo de Barros Martins, José Miranda Filho, Marina Alexiou, Mark Chadwick, Nguyen Thai Tuan, Plínio de Aguiar, Roniwalter Jatobá, Sebastian Govino, Shimoda Haruhiko, Tim Burton e Vincent Van Gogh.

E-mail
tuda.papel.eletronico@gmail.com

Poesia - Arnaldo Xavier

Cave Paintings of Baja California
subsenhor          Sílaba por sílaba salamandra       lâmina sibila concriz
concriz concriz          pássaro rbaro orlando silva da natureza        a
escorrer pela rocha          Tão lágrima de pedra

Poesia - Aristides Klafke

Another moon 04, Shimoda Haruhiko
39

corto as unhas das mãos
haicai ou não ((((((((((
luas crescentes no chão

[ in Quebrada, inédito ]

Poesia - Plínio de Aguiar

Street scene man window shopping for art ~ Gerard Boersma

Requiem Shopping Time

A cidade sai do coldre
a cidade subindo escada
a cidade infiltrando-se em camas.

No andar de cima, em chamas
mulheres aves grávidas
discutem sobre a morte.

Nas ruas lixeiros limpam
nossas consciências.

Acabou tudo, penso
o poema também, penso
acabou:
operários e otários amanhecendo.

[in Lira Rústica, Booklink, 2005]

Poesia - Dorival Fontana

Ed Ruscha ~ Man Walking Away From It All, 1985

Natal

Dezembro são lembranças.
Os mesmos votos renovados.
Promessas não cumpridas.
Procuramos o milagre
nos presentes sob a árvore;
um conforto, um carinho,
um milésimo de felicidade.

A chuva cintila a rua.
Sob os postes luzes trêmulas.
Pela noite sombras tortas.
Na casa todos dormem.

Os amigos esquecidos,
os entes que se foram...
tudo é tempo passado...
parece nunca ter existido.
Caminho em direção a um novo ano,
que simplesmente passa...
como tantos outros.

Poesia - Hamilton Faria

Mark Chadwick

Azul Espigas e Maçãs

Feminino
qual u`a maça
repouso

Minha ó maçã
anuncies ao mundo
tua ternura
ante minha boca

Sóbrialúcidamaçã
desces redonda pelo meu desejo
e o meu silêncio te ama

E tu espiga minha
olhar antiquíssimo das eras
me espias amarela

É uma dádiva te amar

Hoje eu me vesti de azul

(in Encântaros, Escrituras Editora, São Paulo, 1996)

Poesia - Marina Alexiou

Imagem enviada pela autora
A estupefação ante o paradoxo vivo da existência.
As contendas, as guerras, as lendas, incertezas e trilhas
O gelo que habita cada cume escalado,
cada pífia tentativa em um novo círculo infernal.
Nesse palco circunscrito pelo desejo de se ser um outro,
Nuances emergem junto à neblina
das constantes reflexões
sobre os imprecisos papéis reclusos nas máscaras.
Em passeios por agradáveis boulevares,
porém, na escravidão do olhar vazado.
Durante o embate por uma nova e outra realidade
vidas, pensamentos, medos e amores se sobrepõem
formando camadas de uma única sinfonia que,
para alguns,
é possível ouvir.
Junto ao som dos ventos, com delicados e discretos acordes
compostos em profundo recolhimento,
ao longo das aventuras humanas.
Qual notas conjugadas lentamente,
em poesia e dor.....

<A Viagem>

Poesia - José Carlos de Souza

Sunflower (series), by Vincent Van Gogh

Alucinados Girassóis

dou um mergulho em seus olhos,
alucinados girassóis.

brisa ara a pele
em rastros de arrepio.

algo se perdeu na tarde.
algo mudou entre nós.

Conto - Roniwalter Jatobá

Elizabeth Magill ~ Lodge (2), oil on canvas

Alojamento
"A cidade está só. Fria e deserta.
O silêncio povoa a mocidade.
O frio que sai das fábricas
dói no peito
como facada."

Aristides Klafke
Pois digo: aqui dá saudade. Tudo no vigiar deste alojamento medonho de grande que parece um hospital vazio. Nessas horas da manhã todo mundo já descambou no rumo do Paraíso, Ipiranga, Mooca, Praça da Sé, aí por São Paulo afora, num serviço, lembro do trabalho de antes, que já me levou, me cansou metade das forças. E dá saudade, quando vejo os quartos de seis, doze homens, camas de cada lado ou mais vejo esse casarão de madeira, camas pra tudo que é canto, vazias. E olho a porta, alguém que limpa a sujeira da noite anterior, um ente perdido empurrando com a vassoura o sujo do tablado. Tudo lá fora: montes de terra, areia, depósitos de tábuas, tijolos que ficam muito tempo parados esperando a vez de irem para as construções, ferramentas, de lado no terreno baldio.

Vigio tudo. Trabalho de noite. Num sendo de chuva, noite de aguaceiro, não é ruim. A gente acostuma. Só é danado quando uma gripe pega e se tosse a noite inteira. Aí, a tosse vai varando o escuro do alojamento e a rua brilhando de luzes vazia cá fora. Quebrando o silêncio, ali, na madrugada algum carro de polícia passa devagar quase parando na frente do cemitério da Vila Mariana, bem na frente, perto, tem noites que me animam as vistas já dobradas de sono: carros parados, gente entrando no velório ao lado do cemitério, entrando saindo com os olhos chorosos.

Vigio essas ruas, essas casas em frente de gente de posse, que até frentes ajardinadas têm, pois estes olhos que tomam conta deste alojamento no virar da noite pro dia, ganham pra isso, só não dá pra vigiar a vida que passa correndo dia após dia.

O caminhão, todo dia, leva e traz. De manhã, no despontar dela, escuro ainda, os homens vão levantando de um a um, rostos sonados, nessas horas eles não fazem a zoada que na tarde, volta deles, eles procuram como se espantasse o medo daqui, como se afugentasse as histórias que cada um trouxe de Minas, Bahia, Pernambuco, Ceará, Paraíba, de Minas mais, como Silvestre que em tudo trabalha, já matou três na terra dele, isso da boca dele sai, mas a gente vê que é muita lambança, assim, acredita descrendo.

E de manhãzinha o frege é pouco, se mal comparando com a tarde, na base de umas quatro horas. Nas quatro da tarde em ponto, algum caminhão desponta na rua, os homens calados em cima, chega aqui, abro o portão, o caminhão entra macio, os homens vão descendo, guardando as ferramentas, outros pulando correndo na direção dos seus quartos, isso aqui vira feira, ali se escuta conversa de um, radiola ligada de outro, música de rádio pra tudo que é canto, aí, alegra mais. Negreja de gente. Assim, gosto.

No outro dia, no cair das horas vai ficando o silêncio de novo. Quando dá assim pelas oito da manhã neste alojamento nem mosca zune nas paredes dos quartos. E lá longe nos bairros, sei, os homens cavando buracos, vazando água de bueiros, cortando travessias. Homens trabalhando de perderem o chocalho, modo de dizer, homens lavando a camisa de suor, o suor descendo pelas costas chegando nas calças, molhando a roupa no calor das ruas de carros apressados e de buzinas reclamando das ruas apertadas e poeirentas.

No último caminhão que sai, já dia tamanho, o alojamento desaquece do calor dos homens, cem se for contar, então procuro meu canto e tiro o sono do corpo com o sol alumiando lá fora na rua. Nessas horas nem a zoada de alguma escavadeira me regra o sono, o sono pesado suado do calor das tardes, sono parecendo tresvario, parecendo coisa de morto. Época de frio, julho de inverno desregrado, é bom. Sono caipora de tardes frias, o vento entrando nas frestas do barracão, pois a divisão, aqui, é feita de madeira fina que separa os quartos, e já vi homem se encostar em corpo de outro, em meados de junho, unir as camas, sem mau sentido, querendo pegar a quentura da gente, no frio muito.

De noite, eu vigiando, o frio entrando no corpo, doendo por dentro da farda e no alojamento o roncar de cem bocas só esperando o chamado das quatro horas. Os caminhões encostados roncando, se aquecendo, o motorista lá dentro, de vidros fechados só esperando os homens subirem na carroceria pra começar a viagem, uns pra mais perto, outros pra mais longe, pra todos o mesmo serviço. A cidade se despertando e já encontrando os homens seguros em cavadores, enxadas, pás, quebrando o asfalto, arrancando a terra das ruas, limpando bueiros.

No começo do alojamento, dois anos se foram, quando se podia ainda contar os homens que viviam aqui, quando não havia esse barulho que espanta a tristeza de agora, de manhã, toda manhã, tinha Doralina. Nem ela passa, agora, em frente ao alojamento. Dá voltas em outras ruas como fugindo daqui. Aqui era bom no começo, pois Doralina empregada num prédio da rua passava safada carregando pão e leite em frente me tentando, eu engomado vestido de farda de brim azul da firma, nem ligo, mas ligando naquela precisão de mulher.

Conto - José Geraldo de Barros Martins

Procurando Um Livro

Ilustrações do autor


Josias Germano abriu aquela gaveta esperando encontrar o seu velho exemplar de “Com Vocês Antônio Maria” uma coletânea de crônicas do famoso compositor e jornalista pernambucano editada em 1994 pela Editora Paz e Terra... o motivo da busca era encontrar uma citação sobre a poesia de uma mulher dormindo, a beleza daquele corpo descansando em uma posição aconchegante...

Em vez de encontrar o tão esperado livro, ele achou seu velho álbum de fotografias das viagens que executara na década de noventa: sempre só, percorria de trem e de mochila as mais diversas cidades européias... se lembrou quando para economizar dormira em um depósito de toalhas no Hostal Vetusta em Madrid, se lembrou que quando chegou nesta cidade (a primeira que visitou no velho continente) passou três dias a base de gin, cerveja e porções de polvo, o que lhe rendeu uma tremenda infecção intestinal, lembrou-se da vernissage da exposição de Hélio Oiticica na Fundação Tapiás, em Barcelona, onde viu o cineasta Júlio Bressane deslocado, porém não teve coragem de ir lá conversar com ele (fato que se arrepende até hoje), se lembrou também da viagem de navio entre Le Havre (França) e Rosslare (Irlanda) quando para não ter que pagar cem doletas pela cabine individual, dormiu no chão da embarcação após encharcar-se de cerveja guinness e uísque irlandês, se lembrou de quando quase apanhou de quatro hooligans em Amsterdã (*), lembrou-se da emoção ao ver as obras de Agustin Lesage no Museu de Arte Brut em Lausanne no dia de seu aniversário, da seção de gravuras na British Library, em Londres, quando segurou em mãos obras de William Blake e Louis Wain, se lembrou das enormes colagens de Matisse no museu George Pompidou... vendo aquele álbum se lembrou também que só gostava de ser fotografado em movimento, por isso pedia para as pessoas tirassem fotos dele sempre andando... ele enquadrava a fotografia, passava a máquina para as mãos das pessoas que se dispunham a ajudá-lo e pedia: “quando eu estiver naquele ponto dispare a foto!”... achava que isto daria uma dinâmica das suas fotos de viagem... ele sempre caminhando....


Depois pensou que aquela época de errâncias amorosas foi marcada pelas viagens solitárias, das quais os ícones eram as fotos caminhando solitário... eram viagens na base de “manhãs e tardes em museus e noites e mais noites em bares”... pensou que muito mais tarde descobriu aquela lição óbvia que afirma que as pessoas sempre buscam fora algo que na verdade está junto a elas... então pensou nas viagens atuais com sua cara metade Marília Olávia: hotéis cheirosos ao invés dos muquifos azedos em que se hospedara, carros alugados ao invés de trens sacolejantes, vinhos e pratos elaborados ao invés de destilados, cerveja e de vez em quando alguma comida, e muito mais importante que isso: alguém com que possamos conversar, reparar juntos nos mais diversos tipos humanos, dividir impressões sobre uma paisagem, comentar o sabor de um prato, tentar adivinhar seus ingredientes, trocar impressões a respeito de alguma obra de arte, ...

Josias Germano largou o álbum e caminhou até o seu quarto... então observou sua esposa enrodilhada em um cobertor respirando suavemente...

Então finalmente ele se lembrou da frase de Antônio Maria:

“Nenhuma emoção é mais forte que a de entrar no quarto da mulher que dorme. Sentir-lhe o cheiro e o calor, no ar do quarto.”




(*) Josias Germano tomava uma cerveja em um bar em Amsterdã quando quatro hooligans sentaram ao seu redor puxando conversa de forma nada amistosa.... ele para cortar o assunto disse:
- I don't Speak english.
- Where do you come from?
- I come from to Brazil.
- Show me your passport - responderam eles.
- I don't need show my passport because my country have four Worlds Cups (este diálogo ocorreu logo após a Copa dos Estados Unidos em 1994).
Os quatro hooligans, que se diziam belgas, ficaram em silêncio, depois bateram palmas pausadamente... o nosso protagonista achou que já era a hora de ir embora, mas antes precisava terminar sua cerveja... também pegava mal sair correndo, então segurou o copo com uma mão e a garrafa com a outra e não largou até esvaziar a garrafa... sua intenção era estar com estes objetos a mão para atirá-los na cara do primeiro hooligan que viesse para cima dele... ele sabia que poderia ser espancado e que se isso ocorresse era melhor que o rosto do primeiro agressor ficasse sériamente desfigurado... os quatro mastodontes perceberam sua estratégia e gritaram para que ele soltasse o copo e a garrafa... Josias Germano olhou no fundo dos olhos do líder e reparou nos seus dentes quebrados e imundos enquanto este vociferava com a saliva escorrendo pelos cantos da boca... porém continuou segurando o copo e a garrafa até terminá-la com toda a calma do mundo... depois levantou-se e disse em bom português:

- Tchau bando de otários!!!

Crônica - Cesar Cruz


Papai Noel Corporation

Dando banho na Michele ontem, ouvi isso:

— Papai, sabia que o Papai Noel tem uma fábrica de brinquedos só dele?

— Sabia sim — eu disse — quem te contou isso?

— A professora na escola.

— Que legal! É isso mesmo, filha.

Pequena pausa, ensaboa daqui, ensaboa dali...

— Papai, então por que os presentes do Papai Noel vem no papel da Ri Happy?

Pausa minha agora. Meu Deus, o que vou dizer? Não fui treinado pra isso! O melhor é a verdade, que nunca faz mal.

— Filha, é a terceirização. A Ri Happy, a PB Kids e essas megacorporações do entretenimento tem um acordo com o Papai Noel, que pega os brinquedos sempre nas lojas mais perto das casas das crianças e assim tem vantagens logísticas, de frete... Além disso, essas lojas declaram essas doações que fazem ao PN no IR e têm benefícios fiscais; desta forma, todos ficam felizes. Entendeu?

— Tendi, papai.

Conto - José Miranda Filho

Pintura a óleo / madeira compensada, 1959 ~ Portinari

Encontro de Amigos - Parte 25

São Caetano do Sul, 18 de setembro de 1974. Chovia muito naquele sábado de primavera. O dia amanhecera triste e molenga. Toninho, como normalmente fazia aos sábados pela manhã, dirigiu-se ao armazém do seu amigo Jacó para conversar sobre política e futebol, notadamente sobre o PMDB partido do qual era filiado e do Corinthians, time de futebol do qual os dois eram fiéis torcedores. Tomar uma caipirinha, ou então pegar uma carona no Mercury do Jacó e dirigir-se ao Clube Aramaçan, em São Bernardo do Campo, também era costume aos sábados. Assim que chegou Dona Izabel, mãe de Jacó, foi logo lhe dizendo:

- Dona Rosita faleceu. O Jacó foi pra lá. Nem esperou que ele a cumprimentasse e desse-lhe o beijo no rosto, gesto que ela sempre exigia dos amigos do filho.

- O que aconteceu? Perguntou Toninho.

- Não sabemos ainda. Ela amanheceu morta, disse Dona Izabel.

- Então eu vou pra lá. Se o João Pinto aparecer por aqui, a senhora, por favor, avise a ele que estamos no hospital. E, incontinente, Toninho rumou para o hospital onde o corpo estava sendo velado. Chegou lá todo molhado porque havia esquecido o guarda-chuva em casa.

O corpo ainda não estava lavado, a funerária atrasara-se por uns minutos devido à falta de água no hospital. Não tinha como dar banho no cadáver. Esperou alguns instantes do lado de fora junto com outros amigos, inclusive Jacó, que o convidou para tomar um café.

- Você sabe o que aconteceu? Perguntou Toninho.

- Até o momento o que eu sei é que ela ontem à noite não havia passado bem e a levaram para o hospital, e lá ficou, coitada. O laudo médico indica insuficiência respiratória.

- Mas ela nunca se queixou de nada, disse Toninho.

- É... mas nem sempre a gente morre do que sente, replicou Jacó, virando-se para o outro lado e apontando em direção à rua para alguém que vinha chegando.

- É o João Pinto, disse Toninho. Chama ele pra cá.

João Pinto aproximou-se do grupo, cumprimentou um a um apertando-lhes as mãos e foi postar-se ao lado de Jacó, que neste momento já se achava do lado de fora. João Pinto não tomou café. Não lhe ofereceram e nem ele pediu. Voltaram todos ao velório, onde sob a mesa lapidar jazia o corpo inerte.

O féretro foi acompanhado por parentes e amigos até o campo santo. À frente do féretro, carregando o esquife, estavam Toninho, eu, Jacó e João Pinto, amigos da família. E também, Josué, Miguel, Valdemar e Carlos, filhos da extinta.

À noite, após a realização das exéquias, dirigimo-nos a um barzinho na esquina da Rua João Pessoa com Santa Catarina para tomar um chope e descarregar as tensões do dia. Enquanto bebericavamos um gole de cerveja, discutíamos o motivo que havia levado Dona Rosita à morte, já que no dia anterior, sexta-feira, havíamos todos almoçados em sua casa, coisa que fazíamos sempre todas as semanas, cuja refeição ela mesma preparava e sentia-se feliz em nos servir.

Para nós foi uma grande perda! Não sabíamos que rumo tomar de agora em diante, já que Dona Rosita era por todos considerada a mãe ausente, a nossa mãe de São Paulo. Foi difícil esquecer sua imagem e seu amor. Ela estará sempre presente em nossa memória.

Conto - Eduardo Miranda


Jeremia não escrevia

Jeremia não escrevia. Jeremia pouco lia e nada escrevia. Isso durante onze meses e 3 semanas do ano. Sabe-se lá o que acontecia com Jeremia que em épocas natalinas, mais precisamente na semana que antecedia o natal, se dava a escrever, compulsivamente! Embora possa parecer bom, para Jeremia era um tormento! Jeremia escrevia para por para fora... por para fora todo aquele sentimento que, de repente, brotava em seu peito, e que ele chamava de sentimento anti-natalino, que era o oposto do espírito de natal.

Quando criança, Jeremia perguntara ao pai porque não se chamava Jeremias, e o pai respondeu “Pruque tu é um só”.

Assim era o natal de Jeremia: onde as pessoas sentiam amor, Jeremia sentia ódio, onde as pessoas sentiam compaixão, Jeremia sentia desdém, onde as pessoas sentiam solidariedade, Jeremia sentia indiferença. Mas quem conhecia Jeremia sabia que ele era uma pessoa boa. Por onze mêses e três semanas do ano, Jeremia era um exemplo de amigo, colega, vizinho. Mas quando chegava aquela semana, Jeremia se transformava... ficava desesperançado, amargo, frio, indiferente, e enquanto as pessoas se confraternizavam, Jeremia se isolava. Se isolava e escrevia Jeremia. Compulsivamente.

De pequeno Jeremia não entendia muito das coisas. Um dia perguntou para mãe se o seu Manuel da padaria havia lhe batido. A mãe estranhou e disse que não, por quê? Jeremia disse que depois que seu Manuel chegou e entrou no quarto com mãe, mãe não parou de gritar. Naquele dia Jeremia aprendeu que voltar da escola mais cedo com dor de barriga significava uma surra.

Escrevia Jeremia, Jeremia escrevia. Toda aquela amargura, tristeza, desesperança... tudo ia na escrita de Jeremia, que não via a hora disso tudo acabar. Jeremia escrevia sobre a ganância das pessoas e sua conduta moral, sobre seu caráter, sua falsidade...
(...)
Mas se são de solidariedade os tempos, de compaixão e amor ao próximo, por que não realmente pregamos esses sentimentos? Por que ainda viramos as costas para um pedinte, para depois sentirmos pena? Se não adianta dar esmolas, esmolar também não vai fazê-lo nem mais nem menos miserável, ele provavelmente sabe disso, na própria pele! Mas aquele trocado pode salvar-lhe o dia – seja para um prato de comida, seja para um trago de pinga. Quem aí vai julgar?!? O que incomoda mesmo é a presença... ah, se pudéssemos simplesmente eliminá-los! Sim, a eliminação é possível, mas não como faz a polícia de certos Estados, e sim de maneira humana! E sua arma, camarada, é a consciência – igualmente toda a força e toda a fraqueza do homem. Por isso, enquanto estiver se empaturrando de perú e cerveja, não precisa pensar que tem gente remexendo o lixo e morrendo de fome, não... seria muita hipocrisia, e de hipocrisia a humanidade já está cheia. Quando estiver enchendo o rabo de perú, desejando saúde, paz, prosperidade e harmonia para os seus amados amigos e familiares, não precisa nem se esforçar muito... apenas sinta, de verdade, e carregue esses sentimentos ano afora – eu sei, é difícil, mas garanto que vai lhe doer menos...
Nos textos, Jeremia, que nunca escrevia, punha para fora essas coisas, coisas de pai, mãe e família, que não lembrava direito, pois depois que o pai havia se matado, Jeremia muito jovem, passara o resto da infância e adolescência de orfanato em orfanato... vários. Dos irmãos Jeremia não sabia – só sabia que cada um teve um destino diferente.

Geralmente Jeremia queria ver o natal passar rápido, rasteiro, mas ultimamente a coisa vinha mudando, ano após ano! Jeremia percebia que quando escrevia, punha para fora sentimentos alheios aos outros, mas também percebia que, fora da época natalina, quando não escrevia, sentia sentimentos igualmente não compartilhados... E quando concientizou-se de que isso era mais penoso do que escrever, Jeremia deixou de querer que o natal não chegasse, para desejar que o natal não acabasse. Se ele pudesse, escreveria sem parar, numa espécie de manifesto sobre essa hipocrisia toda que alimenta as pessoas, e o próprio ciclo da vida.

Estranha figura era Jonatã, o pai de Jeremia. Não chorava, não sorria. De nada reclamava, e por ninguém sentia. Diziam que ficara assim por causa de Eleonora, mulher infiel. Não teve coragem de largá-la por causa dos filhos Jacira, Jeremia, Jildete, Joel, Juvenal e Agripina. Talvez não tanto por causa de Agripina, filha bastarda, que mais bastarda ficou quando a mãe morreu dando a luz a ela. Culpa Agripina não tinha, mas na cabeça de Jonatã, a filha bastarda era sua única desculpa.

Embora Jeremia não tenha conseguido conspirar com o universo e fazer com que o natal não acabasse, conseguiu um trato melhor: manter aquela amargura, aquele desprezo, aquele ceticismo, pelo resto do ano dentro dele, e agora só escrevia Jeremia... enlouquecido, Jeremia não comia, não bebia, não falava, não dormia... Ficou conhecido como o louco que escrevia.

Quisera Jeremia que o que escrevia mudasse o que toda gente sentia, mas Jeremia sabia que não passava de utopia, e assim escrevia Jeremia, escrevia, e apenas escrevia...

Tradução - Eduardo Miranda

Marley's Ghost ~ John Leech, 1843
Copy of Original illustration from
Charles Dickens' "A Christmas Carol"
O Verdadeiro Natal
Henry Vaughan (1678)

Então, roube alguns louros e algumas heras,
Em seguida, restaure os caminhos da miséria.
O verde irá te lembra das primaveras,
Embora seja o dia de sonhos e quimeras.
A Terra se mortifica, e festeja a céu aberto
Toda a selvajaria, do depravado ao perverto.
Veste-se de rosas e espalha-se por todos os lados
Sobre a neve, com seus seios quentes e corados,
E naquele mesmo vestido de sua leveza
Reprime e murcha as flores de menor nobreza.
Devemos o brilho desta data imodesta
Não à música, à fantasia, nem à festa:
Não aos móveis chiques, nem às belas imagens;
Mas à simplicidade da manjedoura na estalagem.
Sua vida aqui, assim como Seu nascimento,
Serviu apenas à pompa e ao entretenimento;
E toda a grandeza do homem moderno
É contrastada pela humildade do Eterno.
Assim, deixe suas posses e seus bens,
Para recebê-Lo com as intenções de quem
Aceita o sagrado e cumpre a vigília:
As luzes e os cantos abençoarão sua família.
Do que possuem, conquistado na ganância
Para os que precisam, alivie sua abundância.
Quem assim se esvazia, recebe dobrado;
Negar isso é tanto renúncia como pecado.
Vista-se finamente, sem luxo,
Que o Natal vai ser-lhe justo.

The True Christmas
Henry Vaughan (1678)

So stick up ivy and the bays,
And then restore the heathen ways.
Green will remind you of the spring,
Though this great day denies the thing.
And mortifies the earth and all
But your wild revels, and loose hall.
Could you wear flowers, and roses strow
Blushing upon your breasts’ warm snow,
That very dress your lightness will
Rebuke, and wither at the ill.
The brightness of this day we owe
Not unto music, masque, nor show:
Nor gallant furniture, nor plate;
But to the manger’s mean estate.
His life while here, as well as birth,
Was but a check to pomp and mirth;
And all man’s greatness you may see
Condemned by His humility.
Then leave your open house and noise,
To welcome Him with holy joys,
And the poor shepherd’s watchfulness:
Whom light and hymns from heaven did bless.
What you abound with, cast abroad
To those that want, and ease your load.
Who empties thus, will bring more in;
But riot is both loss and sin.
Dress finely what comes not in sight,
And then you keep your Christmas right.

Releitura - Carlos Drummond de Andrade

Fullness of Absence ~ Nguyen Thai Tuan
Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

[ in 'O Corpo' ]

Ilustração - Tim Burton

Nightmare Before Christmas ~ Tim Burton